Por Passa Palavra
Black Blocs foram recrutados pelo narcotráfico para a desestabilização do governo Dilma. A vida de muita gente piorou graças aos babacas de junho e seus “protestos” que geraram o fascismo, assim como a perda da Petrobras, da Eletrobras e de 700 mil vidas. Uma ONG bancou os protestos do MTST e do Não Vai ter Copa. “Você acha que aquele movimento todo ia surgir no Brasil por causa de 20 centavos no preço do ônibus? Só um inocente pode acreditar que foi aquele movimento do transporte livre lá que criou aquilo. Eu estou convencido que aquilo fazia parte da mesma lógica da Primavera Árabe”. “As manifestações de 2013 foram feitas já fazendo parte do golpe contra o PT, elas já foram articuladas para garantir o golpe, porque elas não tinham reivindicações específicas. O golpe começou, na verdade, as manifestações começaram como parte do golpe incentivadas pela mídia brasileira, incentivadas, eu acho que inclusive, de fora para dentro. Acho que já teve o braço dos Estados Unidos nas manifestações do Brasil”.
O parágrafo anterior é um apanhado, quase aleatório, do esforço sistemático que tem sido feito no campo petista para que não ressurja uma esquerda no país. Quase aleatório porque as últimas frases são trechos de duas entrevistas de 2019 dadas por Luís Inácio Lula da Silva, uma ao site Brasil 247 e outra para a TeleSur, sediada na Venezuela.
O ponto aqui tratado especificamente não são os ataques à memória e à compreensão das Jornadas de 2013, e sim o trabalho mais amplo e mais sistematicamente realizado por Lula e pelos lulistas para que o seu governo não tenha de enfrentar qualquer oposição desde o espectro político à sua esquerda. Esse trabalho que, em particular agora no aniversário de 10 anos das jornadas, vem cultivando o mais puro ódio e ressentimento à esquerda não alinhada com o PT, e se desdobra em ameaças de “surra” como as que começaram a ser feitas no ano passado: “Não temos de conversar mais, é baixar a porrada quando saírem às ruas. Ruas é só pra pedir Lula Presidente”. Bem antes do ano passado, em maio de 2014, ou seja, também em ano eleitoral (quando os ânimos se exasperam?), o intelectual petista Emir Sader disse que a torcida Gaviões da Fiel “protegeu o Itaquerão e enxotou os vira-latas”, fazendo referência a uma suposta expulsão do MTST e de outras organizações que protestavam contra os gastos com a Copa da FIFA.
Esse trabalho de Lula e dos lulistas também se desdobra em iniciativas como a formação de milícias digitais para monitoramento de atividades da esquerda e da extrema-esquerda, como um grupo petista no Telegram que não somente monitora ações do PSOL, PSTU, PCB, UP e anarquistas, como vem divulgando dados pessoais de militantes dessas organizações e correntes, desde o local de trabalho até o endereço residencial. É considerado internamente como o trabalho sujo, o “mal necessário”, aquilo que precisa ser feito para evitar manifestações durante o governo Lula.
Os recursos discursivos utilizados são velhos e recorrentes em diferentes tradições políticas. Aparecem com força na deslegitimação que os bolcheviques faziam dos comunistas de esquerda e de todas as correntes que lhes faziam críticas até serem completamente eliminadas na URSS. Aparecem nos atritos internos ao campo mais amplo do bolsonarismo, quando, por exemplo, o MBL acusou Bolsonaro de não ser verdadeiramente de direita por não ser conservador e atentar contra as instituições. O lulismo trabalha o que há de melhor (o que há de pior) dessa tradição: quem critica o governo pela esquerda é uma falsa esquerda, uma “esquerda fake”, que não só não representa o povo como é, ainda que não se tenha provas, financiado e dirigido pelos EUA.
Um detalhe que merece atenção é a centralidade e responsabilidade de Lula nessa operação, tanto por aquilo que ele diz quanto pela forma como diz. Naquilo que ele diz, temos uma inversão quase que simétrica (apenas mais comedida) das famosas e tripudiadas acusações do então candidato a presidente Cabo Daciolo, de que a esquerda brasileira seria um braço do Foro de São Paulo no seu esforço para criar a União das Repúblicas Socialistas da América Latina, a URSAL. No caso dos EUA, seu interesse é a promoção de “guerras híbridas”, arquitetando protestos ao redor do mundo para derrubar governos “progressistas” como o de Bashar Al-Assad na Síria.
Na forma como diz, é importante ressaltar o “modo não temos provas” com que Lula faz a sua acusação. É a própria hermenêutica da suspeita, como o esloveno Slavoj Zizek categoriza a repressão dos bolcheviques aos camponeses:
Na tentativa de explicar o esforço para eliminar a resistência dos camponeses em termos marxistas “científicos”, eles dividiram os camponeses em três categorias (classes): os camponeses pobres […], aliados naturais dos operários; os camponeses médios autônomos, que oscilavam entre explorados e exploradores; e os camponeses ricos, os kulaks […], o “inimigo de classe” explorador que, como tal, tinha de ser “liquidado”. No entanto, na prática essa classificação se tornou cada vez mais indistinta e inoperante: naquela situação de pobreza generalizada, critérios claros não se aplicavam mais, e as duas primeiras categorias uniram-se muitas vezes aos kulaks para resistir à coletivização forçada. […] A arte de identificar kulaks, portanto, não era mais uma questão de análise social objetiva, mas de uma complexa “hermenêutica da suspeita”, de identificar as “verdadeiras atitudes políticas” de alguém, ocultas por trás de declarações públicas enganosas, de modo que o Pravda teve de admitir que, “muitas vezes, nem os melhores ativistas conseguem perceber o kulak”.[1]
Lula está convencido, mas não tem provas de que os Estados Unidos arquitetaram as Jornadas de 2013. Para ele, só um inocente não vê isso. Aliás, Lula não diz “isso”, ele diz “aquilo”, “aquele movimento do transporte livre lá”, “que criou aquilo” – talvez com nojo, mas certamente com o maior distanciamento possível que a língua lhe permite. E como demonstrou Jean-Pierre Faye na sua análise das linguagens totalitárias[2], enunciar é produzir. A distinção entre o verdadeiro e o não-verdadeiro é um problema, um embaraço, quando o que está em jogo é a necessidade de afirmação, consolidação e circulação de um mito. O trabalho de Lula é fazer com que essa “suspeita” se transforme em força social e histórica no constrangimento público e repressão política e física à esquerda do PSOL e à extrema-esquerda comunista e anarquista.
Não deixa de ser curioso o fato de que Dilma Rousseff, que era a presidenta na época, faça uma leitura não apenas diferente como oposta à mitologia de Lula. Dilma não trata 2013 como um plano arquitetado desde fora, nem como o ovo da serpente bolsonarista, e sim como um processo espontâneo e popular de lutas por direitos e serviços que, inclusive, assustou e colocou na parede a oposição de direita no Congresso, ajudou a base do governo a se recompor, e contribuiu para que o PT não fosse derrotado nas eleições de 2014.
Mas, para quem está na presidência em 2023, qual a importância da história das jornadas de 2013 e da eleição de 2014? O que importa é o mito e os seus efeitos mais práticos e profundos.
Notas
[1] ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 162-163.
[2] FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. Tradução de Fábio Landa e Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2009[1972].
O Mito Lula é hoje, como antes já foi o mito Getúlio Vargas “pai dos pobres”, o principal obstáculo político para a organização autônoma pela base da classe trabalhadora.
Enquanto o Mito Lula for hegemônico não daremos sequer um passo à frente.
Esta é a nua, crua e dura realidade a ser encarada e superada.
O mito Lula tornou-se maior do que o político Lula, assim como o Trabalhismo ampliou-se além de Getúlio Vargas.
Não foi por outro motivo o tiro no próprio peito por ele desfechado, para assim entrar na História com o suicídio do personagem político.
Entre trair sua classe (fração desenvolvimentista da burguesia) e convocar o povo às ruas para assumir protagonismo, Getúlio escolheu a morte.
Ainda assim, o Trabalhismo foi mais forte e se impôs: as massas impediram o golpe e adiaram por 10 anos a ditadura.
Embora tenha sido a Mãe dos Ricos, Getúlio entra na História como Pai dos Pobres. Este é o poder do mito, ao ocultar a Luta de Classes cria, e sustenta, a narrativa conveniente à classe dominante.
Não é diferente com o Mito Lula.
Quando atualmente Lula assume posições mais avançadas do que o Lulismo (este como a corrente dominante na política brasileira), é óbvio sinal de como a criatura (Lula) ficou menor do que dela foi gerado (o Lulismo).
Esta desfasagem é perigosa e indicativa da disfuncionalidade do sistema político brasileiro, sendo este o sentido de Junho de 2013: o pacto social da Nova República acabou e nada se colocou em seu lugar.
O Trabalhismo getulista apenas foi superado no final da década de 1970, com a retomada do movimento sindical e a explosão de greves em 1979.
Nem mesmo o carisma de Brizola salvou o Trabalhismo, condenado pelas condições históricas a ficar no passado.
A superação do mito Getúlio Vargas se completa com a fundação do PT, o primeiro partido político no Brasil nascido do movimento de massas da classe trabalhadora.
A superação do Mito Lula exige uma situação análoga, embora não exatamente igual.
Só uma correção: não há nenhum indício de que o grupo foi de fato criado, apesar da intenção explícita desses setores radicais do lulismo. Mas não há nada que contradita o diagnóstico feito pelo coletivo, que está correto.
Diz o comentador:
‘ o Mito Lula é hoje, como antes já foi o mito Getúlio Vargas “pai dos pobres”, o principal obstáculo político para a organização autônoma pela base da classe trabalhadora.
Enquanto o Mito Lula for hegemônico não daremos sequer um passo à frente.’
Será mesmo? Basta então que Lula e o lulismo deixem de existir para que a classe magicamente se organize e os partidos e coletivos de extrema esquerda bombem?
A primariedade programática, os becos sem saída e a debilidade teórica da extrema esquerda não têm nenhuma relação com sua ineficácia prática?
É tudo culpa do Lula e do PT? É tudo culpa do outro?
Concordo com a crítica/questionamentos feita/os por Chico.
Afirmar que o “Mito Lula […] é o principal obstáculo político para a organização autônoma pela base da classe trabalhadora” não tem sustentação na realidade.
Antes, seria necessário indagar os motivos da construção desse mito; interpretar como o PT se transformou no que é hoje e de que maneira Lula se tornou o dono do partido.
Além disso, tal afirmação parece pairar no ar, deslocada da realidade material.
Na atual fase do capitalismo (alguns a definem como uberizado), temos em algum lugar do mundo uma “organização autônoma pela base” com alguma relevância social?
Por fim, há poucos anos, Lula estava trancado em Curitiba e, para muitos, politicamente morto; a extrema direita chegou ao poder com uma das figuras mais toscas da política nacional. Ao longo dos 4 anos de governo Bolsonaro (se preferir, somemos mais os anos do Temer), ocorreu algum avanço da tal “organização autônoma pela base”?
Sim, Lula é um gestor muito eficiente para o grande capital. Tão eficiente que dificulta compreendermos como o Bolsonaro foi escolhido pelas elites em 2018, mas ele e o mito que representa me parecem ser a consequência e não a causa da incapacidade de auto organização da classe trabalhadora. Nem sei se podemos falar em classe trabalhadora no atual estágio.
Claro, as toupeiras seguem cavando, mas aparentemente bem distantes da superfície.
Disse o Chico,
Os questionamentos são legais!
Também são recorrentes como contraponto ao se afirmar que o Mito Lula se tornou o principal obstáculo para a organização autônoma da classe trabalhadora.
Estão também sempre presentes nestes questionamentos referências a conceitos da teoria freudiana do Inconsciente, como “o Outro”.
Longe de ser emancipatório, Freud criou um poderoso instrumento de controle social, através do qual a plenitude do Desejo é confinada no ambiente familiar para ser reduzida numa Falta sem qualquer remissão.
Assim como o Lulismo na política brasileira (quiçá do mundo, diriam), a teoria do Inconsciente freudiano se tornou dominante. E nem poderia ser diferente, pois ambos servem à hegemonia burguesa (ou dos gestores capitalistas, acrescentariam uns outros).
Enquanto a teoria freudiana do Inconsciente for dominante, também não daremos sequer um passo à frente. Porque a Revolução muito além de ser uma questão de Interesse é sobretudo uma criação do Desejo.
“Basta então que Lula e o lulismo [e a teoria do Inconsciente freudiano] deixem de existir” para tudo se resolver?
Óbvio que não! Como obstáculos que são, ambos precisam ser superados. Após o que ainda haverá uma longa e difícil jornada à nossa frente.
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VR: -> “Nem sei se podemos falar em classe trabalhadora no atual estágio.”
Nunca antes no Capitalismo a classe trabalhadora foi tão grande, tão presente, tão viva, tão oprimida, tão explorada. Pois o Capitalismo colonizou todo o tempo de vida convertendo-o em tempo de trabalho.
Tudo deve ser mercantilizado, não pode restar nenhum tempo livre, nenhum ócio. Lazer, emoções e mesmo as experiências de vida e memórias são apropriados como mercadorias a serviço da reprodução ampliada do Capital.
O que fazemos primordialmente nesta área de comentários, senão trabalhar (e trabalhar de graça, portanto trabalho escravo) para agregar valor às plataformas de comunicação da Big Tech?
Até mesmo os povos que resistem à proletarização (como indígenas e quilombolas) estão submetidos a este modelo tecnológico de trabalho e extração de mais-valia.
Enquanto uns querem que a gente morra, outros querem que a gente suma – reaparecendo de 4 em 4 anos, claro, pra evitar o mal maior.
quantos passapalavristas não fizeram o L no ano passado?
Mas essa lógica de atacar tudo o que estiver à esquerda do PT já não estava contido na tese, tão propagada na esquerda e inclusive neste site, de que o Bolsonaro e seus apoiadores seriam fascistas?
Paulo Henrique, se Bolsonaro e seus apoiadores não são fascistas, são o quê?